sábado, 28 de fevereiro de 2015

O Caso do Vestido (não, isso não é o nome de uma peça do Nelson Rodrigues)

A internet, talvez, tenha sido o último grande salto tecnológico do homem, pelo menos nos últimos quarenta anos. Proporcionalmente à sua capacidade de diminuir distâncias, dinamizar o acesso à informação, proporcionar novas formas de negócios e criar todo um novo ramo do conhecimento, todos positivos, ela tem a capacidade de criar discussões, termos e debates inúteis. Totalmente inúteis, ou que nos levam de nada a lugar nenhum.
A última, aconteceu magicamente na madrugada de quinta para sexta dessa semana, foi a discussão sobre as cores em uma foto de um vestido. Vestido esse, na minha opinião, muito simples e comum. Tenho sempre um pé atrás no surgimento orgânico de tais “polêmicas”, é preciso nos lembrar que há sempre interesses monetários por trás desses buzzes.

Não quero entrar no mérito se isso trata-se ou não de uma campanha de marketing escamoteada, meu interesse é observar esse fenômeno, digamos, filosoficamente. Em geral, as pessoas tendem a achar que a filosofia é pensar sobre temas abstratos e “irrelevantes” para a maioria das pessoas, porém esse é um exemplo que ela pode nos ensinar a pensar além dos padrões, fora da caixinha, e questionar de forma mais apurada questões tão triviais quanto as cores de um vestido.
Para tal, é preciso entender que filosoficamente nos deparamos com um tema que é caro à filosofia contemporânea, que é a realidade, aqui especificamente a apreensão e o entendimento da realidade. Um outro tema caro à filosofia, e à psicologia, também está presente aqui: o poder da sugestão. No caso do vestido, que me soa exatamente como um título de uma peça de Nelson Rodrigues, temos uma foto de um vestido que pode ser enxergado, dependendo do observador e do meio observado, como sendo branco e dourado ou sendo azul e preto.
Comecemos pelo poder da sugestão.
Quando tal “polêmica” chegou em mim, já me perguntaram: que cor é esse vestido branco e dourado ou azul e preto? Automaticamente me preparei para responder que era um ou outro, mas e se não tivesse sido me dado às opções impostas, será que não veria o de outra forma e com outras cores?
A sugestão opera fortemente em nós, somos impressionantemente suscetíveis à ela. A hipnose terapêutica é amplamente calcada no poder da sugestão, a propaganda também se utiliza dela. Aqui mostra como o livre-arbítrio e o pensamento individual também são meramente maleáveis e difusos frente ao pensamento coletivo. Eu tive amigos que viram a mesma foto mais de uma vez em meios diferentes e enxergaram o tal vestido em cores diferentes, alguns até argumentaram que a fotografia sendo digital ela poderia ser manipulada e distorcida, se esquecendo que o filme fotográfico precisava ser revelado, e assim poderia ser tratado também. A minha pergunta é: alguém viu alguma outra combinação de cor que não a implicada? Se você teve a sorte de não ter o spoiler das cores, você conseguiu ver essas combinações ou viu outras?
Nos esquecemos que não vemos com nossos olhos, ou escutamos com nossos ouvidos, e sim como o cérebro, que é um órgão complexo cujo entendimento ainda não dominamos por completo. Os olhos e ouvidos são apenas instrumentos que deixam entra som ou luz e assim essas informações são processadas pela nossa massa encefálica. Um bom exemplo de como funciona isso é o fato de sempre enxergamos o nosso nariz, a informação de luz dele sempre chega ao cérebro, mas simplesmente este escolhe em ignorar essa informação por ser “irrelevante”. Ou quando estamos em espaço que tem um som que apenas o “notamos” quando ele cessa de existir, como o barulho do ar-condicionado.
Se a pergunta nos dá a opção de escolha, passamos a nos debruçar sobre qual delas é melhor para a nossa resposta. Mas a verdade, a realidade, é bem diferente que podemos nos debruçar. O que me leva a perguntar: o que é a realidade?
Acho que a melhor definição para essa, notem que estou usando a primeira pessoa do discurso, é que a realidade é o encadeamento de fatos que acontecem ao longo da existência, sem nenhuma espécie de explicação ou interpretação. Basicamente, uma narrativa. Tal questão me lembra um velho debate sobre se os documentários tratam da realidade ou se são ficções.
Vejam, eu impliquei que a realidade é uma narrativa pessoal e subjetiva, ela é única e exclusiva para cada indivíduo, ou seja, para cada pessoal diferente temos uma realidade diferente. Dessa forma, a realidade não é um valor universal. Uma estátua que é destruída no Afeganistão tem um impacto na minha realidade totalmente diferente para um membro do Talibã, temos um fato real que opera em dois indivíduos de forma totalmente diversa.
Dessa forma, como sendo uma narrativa, a realidade pode ser entendida e apreendida de formas totalmente diferente se mudarmos o indivíduo. Nesse caso específico, temos um meio que ao longo de sua história é tratado como a captura da realidade, um discurso que já fora completamente sepultado pelos profissionais da área e por aqueles que pensam esse meio, que é a fotografia.
A fotografia não capta a realidade, afinal há muito mais coisas a serem apreendidas que não estão no pequeno espaço do fotograma. Para não falar que a fotografia é meramente visual, ele envolve necessariamente apenas um dos nossos sentidos e a nossa capacidade de sentir e pensar.

Para mim, as pessoas estão fazendo a pergunta de forma levemente equivocada. Ao invés de perguntar: “qual são as cores desse vestido?” deveríamos nos perguntar: “qual são as cores que você enxerga desse vestido nessa foto?”. Como meio, não importa de fato quais sejam as cores “reais” do tal vestido, fotografia não é apenas o clique e ponto final, ela passa também pela edição e pelo processamento da imagem gerada. A fotografia passa sim pela apreensão de uma fração da realidade e seu entendimento, além da modificação da mesma.

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