A internet, talvez, tenha sido o
último grande salto tecnológico do homem, pelo menos nos últimos quarenta anos.
Proporcionalmente à sua capacidade de diminuir distâncias, dinamizar o acesso à
informação, proporcionar novas formas de negócios e criar todo um novo ramo do
conhecimento, todos positivos, ela tem a capacidade de criar discussões, termos
e debates inúteis. Totalmente inúteis, ou que nos levam de nada a lugar nenhum.
A última, aconteceu magicamente na
madrugada de quinta para sexta dessa semana, foi a discussão sobre as cores em
uma foto de um vestido. Vestido esse, na minha opinião, muito simples e comum.
Tenho sempre um pé atrás no surgimento orgânico de tais “polêmicas”, é preciso
nos lembrar que há sempre interesses monetários por trás desses buzzes.
Não quero entrar no mérito se isso
trata-se ou não de uma campanha de marketing escamoteada, meu interesse é
observar esse fenômeno, digamos, filosoficamente. Em geral, as pessoas tendem a
achar que a filosofia é pensar sobre temas abstratos e “irrelevantes” para a
maioria das pessoas, porém esse é um exemplo que ela pode nos ensinar a pensar
além dos padrões, fora da caixinha, e questionar de forma mais apurada questões
tão triviais quanto as cores de um vestido.
Para tal, é preciso entender que
filosoficamente nos deparamos com um tema que é caro à filosofia contemporânea,
que é a realidade, aqui especificamente a apreensão e o entendimento da
realidade. Um outro tema caro à filosofia, e à psicologia, também está presente
aqui: o poder da sugestão. No caso do vestido, que me soa exatamente como um
título de uma peça de Nelson Rodrigues, temos uma foto de um vestido que pode
ser enxergado, dependendo do observador e do meio observado, como sendo branco
e dourado ou sendo azul e preto.
Comecemos pelo poder da sugestão.
Quando tal “polêmica” chegou em
mim, já me perguntaram: que cor é esse vestido branco e dourado ou azul e
preto? Automaticamente me preparei para responder que era um ou outro, mas e se
não tivesse sido me dado às opções impostas, será que não veria o de outra
forma e com outras cores?
A sugestão opera fortemente em
nós, somos impressionantemente suscetíveis à ela. A hipnose terapêutica é
amplamente calcada no poder da sugestão, a propaganda também se utiliza dela.
Aqui mostra como o livre-arbítrio e o pensamento individual também são meramente
maleáveis e difusos frente ao pensamento coletivo. Eu tive amigos que viram a
mesma foto mais de uma vez em meios diferentes e enxergaram o tal vestido em
cores diferentes, alguns até argumentaram que a fotografia sendo digital ela
poderia ser manipulada e distorcida, se esquecendo que o filme fotográfico
precisava ser revelado, e assim poderia ser tratado também. A minha pergunta é:
alguém viu alguma outra combinação de cor que não a implicada? Se você teve a
sorte de não ter o spoiler das cores,
você conseguiu ver essas combinações ou viu outras?
Nos esquecemos que não vemos com
nossos olhos, ou escutamos com nossos ouvidos, e sim como o cérebro, que é um
órgão complexo cujo entendimento ainda não dominamos por completo. Os olhos e
ouvidos são apenas instrumentos que deixam entra som ou luz e assim essas
informações são processadas pela nossa massa encefálica. Um bom exemplo de como
funciona isso é o fato de sempre enxergamos o nosso nariz, a informação de luz
dele sempre chega ao cérebro, mas simplesmente este escolhe em ignorar essa
informação por ser “irrelevante”. Ou quando estamos em espaço que tem um som
que apenas o “notamos” quando ele cessa de existir, como o barulho do
ar-condicionado.
Se a pergunta nos dá a opção de
escolha, passamos a nos debruçar sobre qual delas é melhor para a nossa
resposta. Mas a verdade, a realidade, é bem diferente que podemos nos debruçar.
O que me leva a perguntar: o que é a realidade?
Acho que a melhor definição para
essa, notem que estou usando a primeira pessoa do discurso, é que a realidade é
o encadeamento de fatos que acontecem ao longo da existência, sem nenhuma
espécie de explicação ou interpretação. Basicamente, uma narrativa. Tal questão
me lembra um velho debate sobre se os documentários tratam da realidade ou se
são ficções.
Vejam, eu impliquei que a
realidade é uma narrativa pessoal e subjetiva, ela é única e exclusiva para
cada indivíduo, ou seja, para cada pessoal diferente temos uma realidade
diferente. Dessa forma, a realidade não é um valor universal. Uma estátua que é
destruída no Afeganistão tem um impacto na minha realidade totalmente diferente
para um membro do Talibã, temos um fato real que opera em dois indivíduos de
forma totalmente diversa.
Dessa forma, como sendo uma
narrativa, a realidade pode ser entendida e apreendida de formas totalmente
diferente se mudarmos o indivíduo. Nesse caso específico, temos um meio que ao
longo de sua história é tratado como a captura da realidade, um discurso que já
fora completamente sepultado pelos profissionais da área e por aqueles que pensam
esse meio, que é a fotografia.
A fotografia não capta a
realidade, afinal há muito mais coisas a serem apreendidas que não estão no
pequeno espaço do fotograma. Para não falar que a fotografia é meramente
visual, ele envolve necessariamente apenas um dos nossos sentidos e a nossa
capacidade de sentir e pensar.
Para mim, as pessoas estão fazendo
a pergunta de forma levemente equivocada. Ao invés de perguntar: “qual são as
cores desse vestido?” deveríamos nos perguntar: “qual são as cores que você
enxerga desse vestido nessa foto?”. Como meio, não importa de fato quais sejam
as cores “reais” do tal vestido, fotografia não é apenas o clique e ponto
final, ela passa também pela edição e pelo processamento da imagem gerada. A
fotografia passa sim pela apreensão de uma fração da realidade e seu
entendimento, além da modificação da mesma.
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