segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Pequena Prosa Pequena 01: Triagem

para Rosi, sem ela essa pequena história seria simplesmente impossível.

É tarde da noite, quase adentramos o mais profundo do reino da deusa Nix. Estamos dentro de uma sala de recepção da seção de pronto-atendimento de um grande hospital público. A cidade, o bairro, pouco importam, pois há um caráter universal na história a seguir.
A sala é arejada, toda branca, iluminada com luzes brancas, dando a impressão de estarmos em um lugar limpo e totalmente livre de todas as ameaças possíveis que possam conter em um hospital dessa magnitude.
Opostamente à porta de entrada, há uma ampla mesa de madeira, provavelmente alguma espécie de compensado, com as bordas amadeiradas em cor marrom. Há, ainda, divisões de workstations, de vidro, há pelo menos umas 15, onde cada pessoal tem um monitor de computador, um teclado e um mouse.

Há dois atendentes nessa seção, nesse turno. Uma mulher, Claudete, que aparenta ter seus 20 anos e com os trejeitos de ser ali seu primeiro emprego; e Lucas, um homem já um pouco mais velho, com sinais de leve cansaço e um olhar irônico. Ambos vestem branco – aliás, nunca entendi ao certo a necessidade do rigor no código de vestimenta para os profissionais de saúde e a cor branca, os indianos e mulçumanos, por exemplo, expressam o luto através do branco – e um colete azul marinho que tem de um lado bordado o logotipo do hospital e noutro o crachá que os identifica, ao menos, como seres humanos. Ambos estão tendo uma longa e jovial conversa por de trás da divisória, tão imponente quanto uma fronteira nacional.
- ... então falei para Jeniffer... – ouvimos Claudete sendo interrompida por Lucas
- Que Jeniffer?
- Aquela lá. Aquela loirinha que ficou no seu lugar ontem.
- Ah! Essa Jeniffer, tava confundindo com a do 5ª andar, a técnica de enfermagem.
- Essa ai mesma que eu tô te falando. Dai eu falei para ela...
De repente, totalmente sem esperar ou aviso prévio, entra pela porta automática um senhor, ele se chama Heleno, e já tem 88 anos, é viúvo há cinco meses. Está elegantemente trajado com um terno preto, uma camisa branca com uma gravata também preta, e uma rosa branca na lapela – Sr. Heleno sempre fora um ávido leitor de história da Inglaterra e um simpatizante pela casa de York – seus sapatos estão lustrados como se fossem para algum baile.
O Sr. Heleno caminha com dificuldade, lentamente e apoiado em uma bengala de ébano. Ele se dirige para a mesa onde se lê a tabuleta suspensa “triagem”.
Sem notar, ou fingir não notar e não se importar com a presença do Sr. Heleno ali, Claudete continua conversando com Lucas.
- ... ele é muito bonito, gostoso, mas sei lá...
Lucas, percebendo que a chegada do Sr. Heleno era inevitável, dá um pequeno piparote no braço da colega, que se endireita e se põe a olhar para o senhor em frente dele.
Esse, para, cansado, senta e apoia a mão vaga em cima da outra que segurava a bengala.
- Boa noite, meus jovens.
A resposta sai mais autômato que o Golem da tradição judaica.
- Boa noite. – diz Claudete
- Aqui se cura de um tudo, não? – resfolegante pergunta o Sr. Heleno.
- Sim, pelo menos tentamos.
- Moléstias do estômago, rim fígado, pulmão? – pergunta o Sr. Heleno em tom jovial.
Claudete faz um gesto afirmativo com a cabeça.
- Gastrite, lombalgia, febre, diabetes, hipertensão?
- Aham... responde uma enfadada Claudete.
- Gripe, difteria, coqueluche, sarampo, erisipela, catapora, bicho de pé, unha encravada, tifo, bronquite, cefaleia, pneumonia, caxumba, malária, rubéola?
Irritada, Claudete retruca.
- Sim, sim, atendemos tudo isso. O que o senhor está sentindo, afinal de contas?
Responde o Sr. Heleno, com um pequeno e triste sorriso.
- Um vazio no coração...

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