terça-feira, 18 de março de 2014

O Aleph e a Literatura Argentina: Uma Leitura

“Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra? Vi-o quando vi todas as coisas e o esqueci? Nossa mente é porosa para o esquecimento; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.”
Jorge Luis Borges - O Aleph

Publicado em 1949, dentro do livro homônimo, o conto O Aleph apresenta, com total certeza, uma das melhores histórias escritas pelo argentino Jorge Luis Borges em sua fase madura, inserida dentro do contexto do dito realismo mágico. Nele, Borges, transborda a sua capacidade de criação de signos e significações, como se vê nesse trecho, onde ele descreve o que seria o objeto que dá nome ao conto e ao livro: “o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, vistos de todos os ângulos”. Ou seja, o Aleph seria um único ponto onde se poderia envergar todos os outros pontos do cosmos. A carga de significação embutida nessas palavras é enorme, ainda mais se levarmos em conta a erudição de nosso interlocutor, há quem, inclusive, faça uma leitor mística, cabalística do conto. Particularmente, eu não a enxergo.

Basicamente, o conto narra três histórias simultâneas: um amor idealizado, até ao ponto de ser um tanto quanto pueril e ingênuo, de Borges, personagem-autor, pela recém falecida Beatriz Elena Viterbo, uma óbvia referência a Beatriz de Dante; a rivalidade amorosa e literária entre Borges e Carlos Argentino Daneri, poeta “menor” que é, de certa forma, ridicularizado por Borges ao longo do texto; e a descoberta do Aleph, que se encontra no porão da casa de Daneri, primo-irmão de Beatriz. Borges consegue fazer com que a leitura e a escrita das histórias narradas se tornem coetâneas, como se próprio conto contasse a si mesmo, sendo escrito à medida que vai sendo lido. Dessa forma, a leitura do Aleph se torna única e exclusiva em cada leitor em cada oportunidade.
Para um autor, conforme, Sergio Miceli, que gostaria de não deixar marcas de sua vida pessoal em sua obra literária, Borges nos surpreende no conto que estamos comentando. Nele o personagem, que também é Borges, se apresenta muito resignado com o mercado cultural de sua terra. Isso fica evidente, principalmente, no pós-escrito do texto, nele o nosso autor põe a nos dizer o que fora feito de Daneri, além da natureza do nome do Aleph e da sua veracidade histórica.
Ainda no campo da natureza dos nomes, parece que a escolha desses para os personagens não nos parece em nada ingênua nem acidental. Como já foi dito acima, Beatriz pode ser uma referência à dama que conduziu Dante do final do Purgatório até o Paraíso, substituindo assim Virgílio, na Divina Comédia. Mas cabe lembrar que Beatriz é Beatriz Elena. Elena, helenística, que morrera a pouco, no começo do conto. Ela pode ser um signo para a cultura clássica, a arte culta, não diluída nos meios populares pelo mercado livresco. Carlos Argentino Daneri pode ser entendido como sendo símbolo para a geração de escritores argentinos das vanguardas da década de 1920 que tinham como uma das principais preocupações a questão da identidade criolla, ou seja, a identidade argentina pela Argentina, muito parecida com a atitude dos nossos modernistas.
Essas mesmas vanguardas que Borges apoio, e militou, no início de sua carreira literária, porém não as aceitou como dogmas programáticos. Por conta de sua origem familiar, Borges passara boa parte da infância na Suíça, e pela cegueira progressiva do pai, ele acabou se tornando um homem do mundo, um escritor com preocupações mais universais. Através de Daneri, Borges acaba por criticar toda a sua geração que buscava fazer uma literatura panfletária. Claro que em sua obra há toda uma preocupação entre os nosotros, os criollos herdeiros, abastados, da colonização espanhola, e os ellos, os imigrantes recém-chegados, principalmente ingleses, alemães e italianos, responsáveis pela diluição da identidade criolla. Até isso está em Daneri: “Carlos Argentino é rosado, robusto, encanecido de traços finos. Exerce não sei que cargo numa biblioteca ilegível dos subúrbios do Sul; é autoritário, mas também ineficiente; aproveitava, até há bem pouco, as noites e as festas para não sair de casa. As duas gerações de distância, o ‘esse’ italiano e a abundante gesticulação sobrevivem nele.”.
Outra leitura que se pode fazer, além dessa crítica a sua geração, é que Daneri é, também, Borges; uma outra faceta dele. Daneri e Borges, o autor, tem traços em comum. Ambos foram diretores de biblioteca, por exemplo. A questão do estrangeirismo é outro traço comum. Daneri como um dos ellos, e Borges tendo passado quase toda a sua primeira mocidade fora da Argentina, na Suíça e na Espanha, não era puramente um criollo.Com isso, podemos concluir que a principal figura de linguagem que inunda o conto é a metáfora, essa, por sinal, traço marcante da literatura borgeana. E qual metáfora é essa? As chaves para tais soluções são múltiplas. Pode-se dizer que é a filosofia ocidental, que é alguma busca para o auto-conhecimento, etc. Optamos para uma leitura onde a chave para essa metáfora – seria impreciso dizer mistério, com toda a influência que Borges teve de Poe? – seja a própria literatura, mais precisamente a própria literatura argentina.
O conto, como observou Mariceia Benetti, é muito bem delimitado tanto no espaço quanto no tempo. Sabemos exatamente que a história se passa em Buenos Aires nas décadas de 1930 e 1940, não há espaço para se duvidar disso. Vemos no conto uma disputa de vaidade entre Daneri e Borges, e com Beatriz ao fundo, por causa de um poema daquele que pretende descrever todo o nosso planeta. Borges ouve a declamação e os comentários, que ele acha chatíssimos, de Daneri. Esse se debruçar em justificar seus versos e de colocar uma erudição extremante exagerada nele.
Isso vai tendo, ano após ano no aniversário da morte de Beatriz, até que no ano de 1941 a casa onde mora Daneri, e onde morava Beatriz, é ameaçada de demolição para a ampliação de uma nova confeitaria que os donos dessa haviam aberto há pouco tempo. Por conta desse pitoresco episódio, Daneri acaba por revelar que não poderia se desfazer da casa por possuir um Aleph no porão da casa.Borges, assustado, o indaga sobre o que se trata tal artefato. Daneri então explica que o Aleph é o ponto onde todos os outros pontos do universo podem ser vistos sem transparência nem sobreposições. Ai nos é revelado o grande signo do conto: o Aleph. Críticos vêm se debruçando na tentativa de interpretar a significação do Aleph. Optamos, vale a pena reiterar, pela interpretação de que o Aleph é uma metáfora para a literatura argentina.
 Na própria descrição borgeana do Aleph podemos chegar à conclusão que estamos de fronte a uma metáfora para a literatura. Por quê? Por causa da universalidade que ele é descrito, há de um tudo dentro do Aleph, em múltiplos locais do globo. Temos sempre que nos lembrar que Borges enxergava sua vida como uma missão para a literatura, principalmente aquela mais intelectualizada. Onde mais podemos encontrar, além dos muros da literatura, toda essa multiplicidade de sentidos e lugares? Podemos argumentar positivamente assim que essa leitura do Aleph como metáfora para a literatura está correta; o que de certo não impossibilita ou invalida qualquer outra interpretação, da natureza que essa seja.
Borges, em sua fase mais madura – que se inaugura com Evaristo Carriego, livro de ensaios de 1930 – acabou por se distanciar das vanguardas literárias argentinas. Podemos perceber isso com a ampla variação de sua temática que ultrapassa as questões da argentinidade para temas mais universais, como a memória, a metafísica, a metáfora, etc. Em Evaristo Carriego, há uma forte universalização dos temas articulados e da forma escolhida: o ensaio. Borges, como se sabe, foi um prodigioso ensaísta. O ensaio possui maior trânsito transnacional, pois, diferentemente da poesia e prosa ficcional, na tradução o sentido não se esvai muito, desde que, obviamente, seja feita uma tradução atenta e precisa. Para as outras duas formas, o conhecimento linguístico é extremamente necessário.
Por isso mesmo, por essa universalização, Borges nos abre tão ressentido no conto comentado. Borges, autor universal – como nos lembra Mariceia Benetti o único autor latino-americano com trânsito universal - ainda era pouco diluído em sua terra natal. Não obtinha o tão desejado prestigio como pensador em sua terra, e não somente em sua terra: Borges, um dos mais importantes escritores do século XX, não foi laureado prêmio Nobel de Literatura.
Borges dirige a sua crítica ao mercado. Daneri, enquanto possui o Aleph, não obtém sucesso, mercadológico, como escritor. Assim que sua casa é demolida e perde-se o seu Aleph ele é premiado e reconhecido como escritor de sucesso. Ou seja, quando se afasta da alta literatura, o Aleph, ele surge como exemplo de sucesso literário. Borges ainda nos presenteia, no pós-escrito, com a informação de que o Aleph da rua Garay é um falso Aleph, que o verdadeiro Aleph estaria dentro de uma coluna duma mesquita cairota do século VII, um apanágio à erudição formal.
Antes disso, Borges, nos diz que começa a perder a memória de Beatriz, que também pode ser lido como um símbolo à erudição devido à escolha do nome do personagem, explicado acima, e pelo fato dela ter morrido há pouco tempo, ou seja, a erudição clássica, o cânone literário anterior, fora recentemente abandonado e substituído por um novo cânone orientado pelas luzes dos vanguardistas finisseculares. As metáforas abundam-se e suas leituras multiplicam-se ao longo de todo o texto.
Assim não pretendemos esgotar, o que é impossível, essa obra-prima da literatura universal que é El Aleph de Jorge Luis Borges. Essa é apenas uma leitura possível dos múltiplos significados que emanam desse texto tão grandioso.

Ler Borges pode ser uma tarefa extremamente dificultosa devido a extrema erudição que ele espera que seu leitor tenha, porém se aceitarmos as regras de seu jogo e, o mais importante, nos permitir jogar o seu jogo, sua leitura abre-se como muito prazerosa e satisfatória tanto para aqueles que são, como por aqueles que não são, atormentados pela figura fantasmagórica do ponto singular onde se reflete todos os pontos, inclusive ele próprio, do universo.

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