segunda-feira, 17 de março de 2014

Perceval, ou o Romance do Graal (Chrétien de Troyes)

Para nós, leitores modernos, é estranho, no bom sentido, lermos um texto que é tão obviamente moralista e evangelizador. A moral – aquela filosófica, não esse arremedo de vigiar os costumes do próximo – é um tema que com a modernidade se tornou secundária, sendo gradativamente substituída pela ética, o que pra mim é estranho, pois todas as revoluções comportamentais que passamos nos últimos 50 anos justificariam uma revisão sobre o bem e o mau.
Enfim, não é sobre isso que pretendo escrever. Meu intento é escrever sobre um texto inacabado do século XII sobre a Demanda do Graal. Publicado no Brasil pela Martins Fontes, dentro da Coleção Gandhāra, Perceval ou o Romance do Graal narra as aventuras do cavaleiro da Távola Redonda Perceval, o Galês, em busca do Santo Vaso e da Lança que Sangra sem Nunca Secar.
A história, em si, é bem conhecida de todos, por isso não entrarei profundamente nela. O que me importa nela são as características expostas no primeiro parágrafo. Sou um grande entusiasta sobre o medievo da cristandade, principalmente no tocante a cultura cortês. Desde de tenra idade, sempre gostei da histórias que envolvessem cavaleiros, damas, reis e rainhas. Porém, por conta da minha formação e da minha leitura, eu havia criado um modelo pronto de mentalidade e sociedade do período. Ler as aventuras de Perceval me mostrou o quanto engano eu estava.

Primeiro, em toda a história há uma forte intenção de evangelizar o leitor, sempre comparando a Demanda do Graal, que nós, modernos, temos a aproximar de uma cultura “pagã” e “celta” do que cristã, principalmente pelas adaptações místicas que a Matéria da Bretanha e a cultura arthuriana tomaram, é usada a todo o momento como uma alegoria às virtudes católicas. O que tem de estranho nisso? Quando e para quem Chrétien de Troyes escreveu sua versão dessa história. Chrétien escreve essa novela de cavalaria aproximadamente da década de 1180, em nome do conde Felipe de Flandres. Ou seja, escreve já no final do século XII para uma classe privilegiada, a nobreza.
Ora, não seria um dos pilares da nobiliarquia ser parte e protetora da fé cristã católica romana? Bom, isso é o que nos ensinam os bancos escolares, porém a realidade parecia muito mais distante disso. Perceval é retratado como um cavaleiro puro, que gradativamente vai abandonando todos os pecados até se tornar o Guardião do Graal, ou seja, um paralelo com a vida que um bom cristão deveria possuir. É uma história, basicamente, catequética, tendo inclusive passagens da Bíblia, fora outras referências cristãs.
Outro fator que pula aos olhos é o papel que é atribuído às mulheres. Elas são retratadas de maneira secundária, sendo somente Brancaflor, esposa de Perceval, que aceita esposá-lo porém não consumir o matrimônio, tendo algum destaque. Além da mãe de Perceval, porém apenas no começo da história. Nem a rainha Guinevere é relevante para a narrativa, apesar do rei Arthur aparecer diversas vezes, o nome de sua consorte, salvo ledo engano meu, não é mencionado nenhuma vez. Aqui não há Morgana, a Fada, a Dama do Lago, ou qualquer outra personagem feminina, exceção à Brancaflor, de peso e profundidade.
É interessante como as leituras contemporâneas da Matéria da Bretanha alterou seus significados e o próprio cerne da história, dando um tom místico e mitológico para algo que era puramente teológico e moralizante, não moralista. Sinais de uma época pouco racional? Talvez...
O que temos então? Temos o retrato de uma sociedade basicamente masculina, violenta, afinal todos os conflitos são resolvidos na base do duelo e do combate, e às franjas da consolidação do poder eclesiástico. Perceval passa de um ser totalmente ignorante e pagão, aqui usado no sentido de não fazer parte da fé cristã, até se tornar monge e Guardião do Graal, e ser referenciado quase como um santo. Ou seja, uma pura demonstração de como a fé em Cristo e na sua Santa Igreja leva o homem, não como espécie, como gênero, para um mundo melhor, ideal e sem a dor e o pecado.

Claro que isso é apenas uma leitura possível de tal história, que por si só, como narrativa, se suporta sem os significados que uma leitura mais intelectualizada possa lhe atribuir. A história é muito boa, cativante e edificante. Sua universalidade, ou digamos, ocidentalidade, torna a sua leitura quase que obrigatória para aqueles que buscam entender de onde viemos e como a nossa sociedade foi construída com o passar dos anos. Outro atributo digno de nota é a tradução, que respeita os termos originais e de época, sem saltar nenhuma apropriação de vocábulo sem o sentido para a época.

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