A cena se repete,
mais vezes do que gostaria, com outros elementos, com outros cenários, até com
outros acontecimentos, porém o cerne da história é praticamente a mesma, por
isso achei que dessa vez daria um texto, uma crônica, para ilustrar algo que
levo preso à garganta.
Semana passada fui
fazer uma entrevista de emprego em um colégio no Sacomã, bairro da região
Sudeste da cidade de São Paulo, perto do Ipiranga e da Vila Prudente. A vaga
era para ministrar aulas de sociologia, filosofia e história para turmas do 9º
ano do Ensino Fundamental até o 3º ano do Ensino Médio, ou seja, seria
responsável por uns 120 jovens ao todo.
Cheguei a tempo, o
que, infelizmente, tem se tornado uma exceção na minha vida, e preenchi uma
ficha e um questionário. Na ficha achei estranho ter uma pergunta sobre a minha
religião, mas já vamos chegar nela, não pensei duas vezes e coloquei: ateu. O
questionário era longo e chato, era sobre competência aplicada à pedagogia.
Chato e longo, como eu disse.
Depois de preenchido
ambos, entreguei para a secretaria da escola e essa passou para a diretora, que
era quem iria me entrevistar. Logo, fui encaminhado para uma sala de aula, que
funcionava para os cursos noturnos de enfermagem, o que aliás mostrou-se uma
das situações mais estranhas pelas quais passei, pois estavam lá bonecos e
partes de bonecos simulando o corpo humano, e tenho pavor de três coisas:
altura, cobra e simulacros.
Bom, a diretora
chegou, e a entrevista começou. Estava indo razoavelmente bem, em situações
sérias como essas tendo a romper o casulo do silêncio e beirar a tagarelice. A
conversa, falávamos sobre metodologias de ensino, sobre a USP, sobre a família,
ela me explicava que a escola era de viés presbiteriano, e eu respondia que não
enxergava nenhum problema nisso, mesmo sendo ateu.
Quando se
aproximávamos ao fim da entrevista, eis que vem a pergunta de um milhão de
dólares, que já estava no questionário, por sinal: você tem algum problema de
saúde?
Para quem me conhece,
seja leitor ou conhecido, sabe que possuo um código de ética e moral muito
rigoroso, sempre calcado na verdade, na justiça e na sobriedade. Sou, tento
ser, basicamente, um modelo kantiano de homem: faça o que o certo mesmo sendo
errado. Por conta disso, respondo: sim, tenho. A diretora então me pergunta
qual.
Falo com a maior
naturalidade, depois de anos de recalque e medo sobre o assunto: tenho
depressão. Aqui entra a maldição da literatura: não há palavras para narrar a
feição da diretora, parafraseando José Silveiro, o Pai do Gol. Ela ficou
visivelmente desconfortável com a informação, como se eu tivesse dito com a
maior naturalidade que eu curtia alguma parafilia. Ela então me pergunta: e
você toma remédio? Respondo, também com a naturalidade de antes: claro! essa é
uma doença muito séria e crônica, sem cura e com componentes genéticos,
ambientais e sentimentais, por que não tomar?
A diretora, que
suponho deva possuir no mínimo uma graduação em pedagogia, parecia ter visto um
ET, a Anunciação da Segunda Vinda, um pênalti batido para fora que garantiu o
título da Libertadores, sei lá; então ela me solta a pérola: e você já tentou
parar de tomar e não ficar com depressão? Ai foi a minha fez de ter visto algo
totalmente fora da realidade ali expressa.
Muito educadamente
explico a ela que depressão – não confundir com tristeza, ou melancolia – é
tratada ou com remédios psiquiátricos ou com terapia ou, ainda, ambos. Ela diz
que entende e então martela o último cravo no caixão: mas, puxa!, você não tem
cara de quem tem depressão, você parece tão calmo, tão falante, tão... normal.
Na minha garganta, um
líquido quente e viscoso sobe com a força do trovão. Nada mais tenho para dizer
a não ser os adeus e até logos de praxe.
Não consegui o
emprego, como dá para notar, e acredito, piamente, que não consegui-o mais pelo
fato de ter uma doença que é tão comumente difundida, apesar de todo o
preconceito, em detrimento de possuir, ou não possuir, uma fé contrária ao
programa pedagógico da escola.
Ou seja, puro
preconceito da diretora, que achou que somente pelo fato de eu tomar remédios –
pois é, no plural, porque além da depressão, também sou diagnosticado com TAG
(Transtorno de Ansiedade Generalizada) – “tarja preta” eu seria algum tipo de
sociopata, quando de fato eu sou um cara legal até, meio idealista, mas legal.
Falta-nos mais transparência e conhecimento sobre certos assuntos, afinal foi
até leve, mesmo que condenável, o que eu passei. Só imagino que tem algum
problema mais grave e socialmente repudiado, como alcoolismo, passa no seu
dia-a-dia. Pois é, são em situações como essa que vemos o quanto podemos ser
preconceituosos e ignorantes no nosso cotidiano, às vezes até sem nos
apercebemos disso.
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