segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A Chuva


A proposta desse blog não é divulgação do meu trabalho literário, acredito que hajam outros métodos e espaços para tal, porém ontem ao revisar o meu próximo livro, O Livro de Taw e outras histórias, me deparei com um texto escrito há alguns anos, que havia pensado esquecer ou que seu mérito era muito ruim, entretanto para meu total espanto, o tal escrito era muito bom, muito bom mesmo, segundo os meus critérios, evidentemente.

Então, para compartilhar com você, leitor, esse meu pequeno orgulho, e lhe dar um pouco do que está por vir em O Livro de Taw e outras histórias, eu apresento a você A Chuva.


A Chuva

“Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem, cada um como é.”
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

Peço, antecipadamente, desculpas ao leitor: o que você está para ler não é uma história convencional, um conto, uma prosa. É um escrito pessoal e muito alegórico, talvez um pouco sem sentido. Mas está ai, talvez não para ser lido, pois isso envolve apenas a nossa racionalidade. Recomendo o leitor que o sinta, não no sentido piegas e sentimentalóide: sinta-o como uma experiência sensorial. Eu altamente recomendo que ao ler esse escrito abaixo, o leitor tenha perto de si alguma porção de água, de preferência em movimento, e que de tempos em tempos olhe-se nela. Assim, leitor, você percebera que a experiência com o texto será muito melhor.

*
* *

Sentado à mesa, na beira da janela, Gregório Samsa me olha com um certo desdém.
É uma tarde abafada não sei se pelo clima ou por Kafka ressoando na minha cabeça. É tudo tão vasto, me perco na delimitada imensidão da minha vaga Biblioteca de Babel.
Quantas palavras ainda eu não lerei?
Quanto tempo ainda eu vou perder?
Tenho vontade de nunca mais dormir, de nunca mais sair desse quarto trancado, que é a epígrafe da solidão, há algo de muito ambicioso na minha alma, eu apenas queria ter algum talento, deixar algum rastro, deixar você sentimental.
Kafka, absurdamente, me faz uma careta kafkiana.
Olho a janela tão vagamente, deixo-me perder pelo infinito do horizonte cinza da minha cidade que não é amável nem delicada: ela te devora, engole e regurgita em qualquer lapso seu.
Se ao menos Rimbaud e Baudelaire estivessem aqui, eu poderia pedir algumas explicações.
Esses meus desejos são tão patéticos que Borges me dá as costas e vai-se para o seu mítico Sul.
Terá alguma metafísica a metafísica?
Sou areia, apenas areia cósmica que por mera casualidade, e uma remota chance na probabilidade, se fez um ser.
Um ser que pensa e sente.
Um ser que vive e morre.
Um ser. Como qualquer outro. E único. Ao mesmo tempo.
A cadeira dá uma pequena reclinada, fico pensativo. Essa janela me chama, por algum motivo.
Por nenhum motivo pego o Bandeira, sua ausência me faz chorar.
Onde andará Bruno Rosa agora?
Eu não sei responder muito bem ao certo: estou aqui e estou lá, estou em lugar nenhum.
Minha essência, há muito, se perdeu em algum nevoeiro.
O céu está cinza, cinza como a cidade, como a vida.
Não há, e não cabe, o tédio romântico, o spleen. Ainda preciso fazer muita coisa até ter o direito de possuir algum spleen.
O único tédio que cabe aqui, nesse absurdo literário, é o tédio vernáculo mesmo, aquele que o Aurélio, ou o Houaiss, definem em seus calhamaços.
Eu não vivo, eu escrevo; essa é a minha maldição. Talvez sempre soubera disso, mas somente naquele único instante eu tenha me apercebido disso assim tão vivamente.
Trovões, simbólicos, é tudo o que ouço.
A cabeça cai obviamente aos braços apoiados nos joelhos.
Não são lágrimas que rolam, é uma epifania.
Eis minha vida.
Meu devir.
Minha maldição.
Minha redenção.
Minha perdição.
Gotas caem no chão do meu quarto, choro como se deve chorar.
Estou me encontrando, profundamente, intensamente.
A chuva cai também.
Agora tudo é água, tudo é fluído, minha existência se esvai em um único rio.
E desse rio pretendendo nunca mais me banhar.
Uma canção sobre amor toca no rádio. E chuva cai e me chama; corro, em pensamentos, pela chuva. Corro para longe, para longe de mim.
Ver é estar doente dos olhos, pensar é estar doente da alma.
Não penso, não sinto, não vivo.
O barulho das gotas lá longe me acalanta.
Tem alguma coisa nas chuvas que nos faz perder. Pode ser o som, as imagens, a nossa insignificância, a imensidão da natureza. Sei lá, me sinto bem, muito bem, quando chove.
Me sinto como se aceito.
Deve ser Deus, ou alguém com outro nome, ou nomes, ou qualquer outra entidade metafísica superior cuja existência é um tanto improvável, me perdoando dos meus pecados.
Sim, eu peco! Não há nada mais verdadeiro como um pecado bem pecado. Deus pode não existir – eu acho que não – mas o pecado, ah, esse sim existe, afinal como seria a nossa existência nesse pequeno ponto azul-pálido perdido no cosmos sem o pecado? É só ler Kierkegaard, ou qualquer outro existencialista, para ser que sem o pecado não haveria humanidade.
A chuva aumenta, o volume de água faz com que seja impossível ver o outro lado da janela.
Uma ideia: abro a janela, sinto a água escorregar pelo meu rosto, pelo meu corpo, pela minha alma.
Venço a acrofobia, terrível, e me estico para fora, para o céu, ergo os braços.
GRITO!
Estou lavado, estou limpo de novo.
É um recomeço, até o Kafka para e me olha com um sorriso tenro de aceitação.
Sou criança.
Sou velho.
Sou amante.
Sou tudo o que eu quero ser.
Sou.
Serei.
Fui.
Venha chuva, caia, sem medo, eu te pego.
Eu te amo, chuva!
Eu quero ser um, eu quero ser você. Juntos, ad infinitum, como um só ser, um só elemento.
Eu me torno a chuva, todas as lágrimas tornam-se doces e de regozijo, a tristeza é levada gota-à-gota do sétimo andar até o chão duro e frio de um playground que não tem nada.
Será que a infância não existe mais?
A tristeza que aqui morava, fora despejada pra fora, pela chuva, por mim, pela filosofia, pela literatura.
E como é bom quando chove.
É como aquela música do rock irlandês: “I am only happy when it rains.”
Venha chuva, cante a sua melodia para mim, cante até secar, cante, espalhe-se por todos os lados, por todos os amores, por todos os seres.
Cante chuva, cante.
A liberdade, outra maldição, está na chuva, eu defronto a chuva como quem defronta o amor.
Chova chuva, isso é ser você, é ser chuva.
Suas águas são águas, é tudo tão simples, é tudo tão claro.
Eu a quero, chuva.
Eu a desejo, chuva.
Eu.
Chuva.

Eu sou a chuva.

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